quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Rotina

Cheguei. Bati a porta com força para simplesmente ser notada. Têm dias que acordo assim. Sou mulher. Não me entendi na frente do espelho, acabei saindo rápido e mal resolvida. Cadê meu brinco? Mas eu cheguei. O estalo fez com que ele olhasse por cima da pilha de papéis que cobriam a mesa. Ele sabia que iria encontrar meus olhos, famintos, buscando-os. E então cruzamos. Ou melhor, cruzaram-se. Eu sorri.
Com minha echarpe amarela, meu saltinho nada básico e minhas unhas vermelhas sentia seu incomodo em mim. Dei um sorriso de lado, gostava daquilo. Ele tão soberano e absoluto, reagindo feito um garotinho de quinze anos. Inocente.
Saiu ao telefone. Hábito que fazia nas horas de tensão. Pelo menos eu sabia quem estava no controle. Sorri novamente, agora sem ele para me observar. Sorri para a papelada que fazia da minha mesa um encontro de tudo. Sorri para minhas pernas cruzadas. Sorri para mim.
18h. A echarpe já me incomodava, foi a primeira que joguei na bolsa e esqueci por lá, sabia o que me esperava, por isso me tranquilizei com meia dúzia de planilhas e um gráfico bem colorido no excel.
21h. Além da echarpe, quase tudo me incomodava. Meus óculos, minha mesa, aquelas planilhas e o gráfico que já tinha se tornado cinza, que horror. Eu ria das bizarrices que era capaz de fazer. "É...", pensei comigo, "hora de ir pra casa". Sozinha peguei tudo que tinha me desfeito ao longo do dia, a chave do carro, a bolsa com a echarpe, as pulseiras e dei um tchau alegre para as paredes que me acompanhavam. Fui.
No caminho pensei, “casa ou não casa?”, "seco ou suave?", comprei o seco. Branco. Como ele sempre gostou. Cheguei, agora sem muito estardalhaços. Apertei a campainha uma, duas, três vezes. Já tinha lembrado daquela sua ex, do seu time ridículo e daquela vizinha, gorda, que sempre me lançava olhares quase que matadores todas as vezes que me via chegar agarrada ao seu pescoço. Se fosse por mim, já teria feito um despacho com a foto de todos eles, ali mesmo, no pé daquela escada velha do seu prédio.
Ok. Vou embora, pensei. Quando ia tirando o vinho da bolsa para deixar como um sinal de "estive aqui" a porta se abre. Tinha esquecido do seu costume de ser metódico e deixar as coisas todas arrumadas e me receber só de toalha. Aquele era, sem sombra de dúvidas, um dos momentos que eu mais te devorava. Olhos, cabelos, abdómen, barba feita, tudo meu. Meu, e eu queria logo.
Sorri daquela cena, corriqueira, se tratando de nós, e imaginei a vizinha. Coitada. Ou enfartaria ou sairia correndo pra procurar o primeiro contato da agenda telefônica dela. Quem seria? Arnaldo? Amadeu? Antônio? Ai que brega. Deixa ela.
Tirei o vinho da bolsa, "surpresa" gritei entusiasmada. Você balança a cabeça e me pede pra entrar. Casa perfumada, cheirando a você. À meia-luz, maravilhosamente  confortável. Jogo minha bolsa num canto, os sapatos você faz questão de tirar, debocho da sua paixão por saltos, mas no fundo gosto do seu vício. Começamos a nos doar ali, a 15cm do chão, sobre meus saltos, sob você. Clima quente. Peço gelo, com vinho.
Pausa. Saliva e bons goles de risada com você. Devoramos tudo que podíamos à mesa. Nossos pratos, nossos gestos, nossas bocas, nossos corpos. Agora vestia-me apenas de mim mesma, aliás, vestia-me de você. Sem medo, sem pressa, sem porquês. Estava em boas e deliciosas mãos e já não conseguia esconder o sorriso largo que se formava em meu rosto.
Ao som de um blues encorpado que tocava na sua antiga vitrola, éramos um. E as horas passavam abusadas por nós. Éramos o que queríamos ser. Personagens, desejos, delírios.

E assim a música acabou, fez-se um longo e gostoso silêncio, interrompido pelo seu despertador e os primeiros raios de sol. Nos olhávamos, saciados. Era esse o nosso momento de bom dia. E assim ficamos, até que de volta o inconveniente do seu despertador mais uma fez gritava pela casa inteira. Ok, ok, ok, Sorriso frouxo no rostos e olhares que diziam: "Até mais tarde".



Beijinhos da Berga.
Até.